Bastiscafo
Cuba · Havana
2009︎Residência O programa de residências Batiscafo convidou Lastro para uma residência na qual a curadora Beatriz Lemos viajou junto ao artista carioca Pontogor, contando com a colaboração da curadora cubana Yuneikys Villalonga. Na ocasião, Pontogor realizou uma ação com projeções públicas das imagens que produziu durante a residência. Houve também outras intervenções e apresentações ao público, que tiveram a artista espanhola Núria Güell como convidada. Lastro deu prosseguimento às pesquisas e contatos com artistas e agentes curatoriais locais, enquanto Yuneikys realizou pesquisas para o seu projeto Curadurias Invisibles.
Batiscafo
Cuba
2009 ︎ Residency
The residency program Batiscafo invited Lastro for a residency, for which Beatriz Lemos traveled alongside the Rio de Janeiro artist Pontogor, with the collaboration of the Cuban curator, Yuneikys Villalonga. In the occasion, Pontogor realized an action with public projections of images that were produced during the residency. There were also interventions and presentations to the public, having the Spanish artist Núria Güell as a guest. Lastro continued with its research and establishing contact with local artists and curatorial agents, while Yuneikys conducted research for her project Curadurias Invisibles.
︎Texto curatorial
Resistir para acreditar
O exercício de rememorar minha estadia como curadora brasileira residente de Batiscafo me facilitou entender o motivo de meu incômodo ao responder à pergunta de amigos após o retorno da viagem: “Você foi para Cuba, que maravilha! E aí, como foi?”. O incômodo vinha por não saber ao certo a resposta, e apenas concluía ter sido uma experiência intensa.
Foram vinte dias de muito trabalho, com entrevistas e visitas a artistas, curadores e gestores de arte para que eu conseguisse conhecer a cena artística local e entender um pouco da lógica de pensamento que rege esse país. Para poder adentrar os círculos relacionais de Cuba, é preciso criar uma nova teoria da realidade. Cuba é um lugar onde códigos de conduta nos levam muito mais rápido a um destino do que simplesmente possuir dinheiro para um táxi; onde reproduzir tradições significa mais do que questionar posicionamentos e onde “ir e vir” ou “penso, logo existo” não pertencem aos cidadãos comuns. As adversidades relacionadas a um sistema político que hoje se encontra em visível decadência e no auge de seu absurdo estrutural me comoveram bastante.
Não é possível estar em Cuba e não respirar política. É algo que se fala e se escuta em todos os momentos do dia. Antes de conhecer a ilha, eu pensava que arte política em Cuba poderia ser um grande clichê ou lugar-comum; porém, abstrair esse contexto tão peculiar é absolutamente impossível, e ao viver nele o artista se torna o escape de toda uma sociedade. Em Cuba a profissão de artista plástico ganha status diferenciado daquele das demais funções sociais. O trabalho autônomo e a possibilidade de viajar inúmeras vezes ao exterior são regalias concedidas pelo governo. Isso faz com que o artista possa se manifestar sem ameaças diretas e, quando em outro país, sem a pesada censura. Esse é um dos motivos pelos quais a arte cubana é muito mais debatida e estudada fora de Cuba. Exposições e publicações antológicas são realizadas para estrangeiros – no país, somente os projetos que compactuam com diretrizes socialistas são apoiados pelo governo. Essa impossibilidade de refletir publicamente sobre passado, presente ou futuro estrangula de maneira brutal o direito universal à liberdade de expressão e engessa qualquer ideologia. Aqui toda arte é de resistência e fazer arte é fazer política, intrínseca e necessariamente.
Como residentes Batiscafo, o artista brasileiro Pontogor e eu tivemos o privilégio, entre poucos estrangeiros, de viver na casa de cubanos, aprender as regras relacionais e de conduta e conhecer de perto as limitações nutricionais, materiais, financeiras e intelectuais impostas àquela sociedade. Na lógica institucionalizante local, muitas coisas fizemos são ilegais: viver com cubanos, usar moeda local e andar em táxis informais – e mesmo a existência de Batiscafo é ilegal. Dentro dessa lógica de ilegalidade, os estrangeiros que visitam Havana conhecem o lugar com os filtros turísticos abertos no país a partir dos anos 1990, onde tudo é vendido em CUC, os edifícios são restaurados, a educação e a saúde são as melhores do mundo e o sistema político em vigor continua sendo um desejo do povo. Havana me pareceu uma cidade repartida em dois mundos, os quais, ao mesmo tempo que se ignoram, são obrigados a se reconhecer diariamente. Mundos fictícios, onde personagens literários atuam em cenários de filmes e tudo parece ser de mentira.
De fato, muitas vezes eu senti que estava dentro de um filme e me perguntava se aquilo tudo existia de verdade. Será que era tudo real? Será que é real só ter o direito de comprar uma pequena quantidade de comida por mês e ser controlado através de um livreto? Será que é real um salário mínimo de 10 dólares, o mesmo valor que eu pagava por uma hora de internet? Será que é real um país onde o estrangeiro sempre tem mais razão do que o cidadão? Será que ainda é real artistas não poderem abordar qualquer assunto em suas obras e serem vigiados por uma entidade – “O Estado” – ou simplesmente proibidos de se manifestar por meio de, por exemplo, publicações independentes, que podem ser enquadradas como material panfletário desertor? Um mundo de absurdos, e tenho consciência de que só pude experimentá-lo porque estive como residente em Batiscafo. Do contrário, essas desigualdades não me afetariam tanto, pois estariam maquiadas ou distantes. Isso me fez pensar muito em minha cidade, o Rio de Janeiro, onde as desigualdades são tão cruéis quanto e os desiguais também convivem lado a lado. A diferença é que no Rio a violência urbana é por onde essas desigualdades gritam, enquanto em Havana as pessoas esperam. Nos dois casos, pessoas e cidades estão prestes a explodir.
Entrevistei 26 pessoas, em sua maioria críticos e curadores. O curioso foi que a maior parte dos artistas que me interessei em conhecer se encontrava fora de Cuba por dois diferentes motivos: alguns tinham ido embora do país e outros estavam viajando a trabalho. Por isso, meu foco de investigação passou a ser a jovem produção crítica e a prática curatorial. Até pouco tempo atrás, a função de curador era uma atividade de pouco prestígio no meio artístico cubano. Como qualquer trabalho não ligado a uma instituição ou, de alguma maneira, credenciado pelo governo cubano, a prática era considerada fora da lei, sendo que o curador só existia em centros públicos ou fundações internacionais. Além disso, a curadoria autônoma é um fenômeno recente dentro da cena cubana. Essa característica apareceu em grande escala em minhas entrevistas, mas pude perceber que, apesar de a atividade estar conquistando espaços legitimadores no país, a profissão continua carente de políticas vigentes para sua remuneração. Muitos curadores sobrevivem por meio de convites diretos de artistas; ou seja, em Cuba, é o artista que paga – de seu próprio bolso – pelo trabalho de um curador e pelo texto crítico de sua mostra. Quando não é dessa maneira, o curador apenas ganha currículo com as exposições de que participa. A única saída quanto a financiamentos e apoios depende das fundações internacionais, em grande parte quando se trata de projetos realizados fora de Cuba.
A mesma lógica se aplica à venda de obras. As poucas galerias de arte são estatais e negociam suas representações em moeda local – o peso nacional, que é extremamente desvalorizado mesmo dentro do país. O Museo Nacional de Bellas Artes possui uma política anual de aquisição, com o intuito de revigorar o acervo e apostar em jovens artistas, porém só adquire as obras por peso nacional. Dentro do país não existe mercado ou colecionismo e, por ironia, o grande fluxo de compra e venda de arte cubana encontra-se nos Estados Unidos. O artista que é representado no exterior recebe em moeda estrangeira e, quando opta por continuar vivendo em Cuba, conquista um alto padrão de vida. A maioria dos grandes artistas cubanos se encaixa nesse exemplo. Ser artista em Cuba é um ótimo negócio!
As instituições que visitei, em sua maioria, são bem equipadas, têm espaços expositivos adequados e diretores e curadores dispostos a novidades. A postura que necessita assumir um diretor à frente dessas instituições é bem delicada: mesmo adepto de práticas contemporâneas em arte, é preciso em alguns casos agir como censor a favor do Estado. Esse é o motivo pelo qual muitos dos profissionais deixam as instituições para se arriscar em carreiras independentes e com alto teor de instabilidade. Dos espaços alternativos em arte, conheci apenas o Aglutinador, de Sandra Ceballos, que há 15 anos vem resistindo firme e forte, mesmo vigiado de perto por inspetores da Revolução. Acreditar e trabalhar são sempre ações de resistência.
Nesses vinte dias em Havana, senti um pouco de tudo: impotência (qualquer mudança nesse contexto pode acontecer somente por iniciativa do povo cubano, pois nenhum estrangeiro pode agir na estrutura dessa lógica cultural), estafa (por que é tudo tão difícil? – a maneira de agir um com o outro é burocrática e isso é visivelmente cansativo para os próprios cubanos) e desapontamento (como é que sonhos e crenças são destroçados? A Revolução foi uma utopia real, um sonho da população. O embargo imposto pelos Estados Unidos e depois o fim do bloco socialista em 1989 levaram o sistema político de Cuba à decadência e ao desespero. Algo triste de se saber e ver). Por outro lado, o privilégio de conviver com jovens artistas e intelectuais esclarecidos e constatar, a partir desse contato, que arte e cultura sempre serão ferramentas para um pensamento crítico e que acreditar nisso é a ideologia possível na contemporaneidade – independentemente de qualquer desejo político – foi fundamental para mim, como profissional e indivíduo. Essa geração jovem – com a qual mais tive contato –, que cresceu durante um período conhecido como “especial” (anos 1990) e que se esquiva das dificuldades de acesso às tecnologias da comunicação e ao pensamento livre, é a geração que respira por mudanças e que possui as ferramentas necessárias para a construção das próximas utopias de um novo país.
Beatriz Lemos
Texto publicado na Revista Global Brasil, Conexões Globais, ed. 12, 24.05.2010
Profissionais do meio artístico que passaram por entrevistas
Abel Barreto Olivera, Adonis Flores Betancourt, Adrián Fernández Milanés, Adrián Melis Sosa, Alberto Famadas, Alejandro Campins Fleita, Alexander Guerra Hurtado, Alexis de la O Joya, Amalia Iduate Gómez, Ana Olema, Analía Amaya García, Andrés Abreu, Anyelmaidelín Calzadilla Fernández, Asori Soto, Beatriz Gago, Carlos Garaicoa, Che Alejandro Nápoles, Cristina Figueroa, Cristina Vive, Diana Fonseca Quiñones, Douglas Argüelles Cruz, Duvier del Dago Fernández, Eduardo Rubén García Herrera, Elvia Rosa Castro, Ernesto Fernández Magua, Ernesto Leal, Ezequiel Suárez González, Frency Fernández, Gerardo Mosquera, Glenda Léon Arévalo, Grethel Rasúa Fariñas, Hamlet Lavastida Cordovi, Hander Lara Figueroa, Hector, Ibis Hernández, Israel Rondón, Javier Castro Rivera, Jeanette Chávez Ruiz, Jesús Hernández-Guerrero, Jesús Ravelo, Jorge Wellesley-Bourke Marín, José Ángel Toirac Batista, Juan Carlos Rodriguez, Kirenia Fernández, Lázaro Saavedra González, Levi Orta, Luis Gárciga Romay, Luis Gómez, Magaly Espinosa, Mailyn Machado, coletivo Makínah, María Parrado, Marianela Orozco Rodríguez, Niels J. Reyes Cadalso, coletivo OMNI-Zonafranca, Orestes Hernández Palacios, Pavel Acosta, Ponjuán, Raúl Cordero, Raychel Carrión, Reinaldo Ortega Sardiñas, Reynier Leyva Novo, Ricardo Gonzáles Elías, Rodolfo Peraza, Samuel Riera Méndez, Sandra Ceballo, Sandra Sosa, Yuneikys Villalonga.
Espaços de arte contemporânea visitados
Bienal de La Habana, Centro de Arte Contemporáneo Wifredo Lam, Espacio Aglutinador, Proyecto Batiscafo.
︎ Anexos
︎ Texto curatorial em espanhol
︎ Revista Global